Projecção de "À beira do mar azul" de Boris Barnet – com comentários de Cristina Fernandes - dia 17 Out - sábado - 22H


A alegria física dos encontros

Boris Barnet praticava boxe, era um homem forte e elegante, a sua estatuta e imprevisibilidade assustavam. Entrou no cinema pelas traseiras e sempre fez as coisas ao seu jeito, quer dizer: levava tudo e todos à frente. Esta breve descrição é talvez um pouco leviana, mas quando penso em Barnet, vejo um corpo em movimento, uma espécie de locomotiva ou foguetão, e é por aí que quero começar: alguém que tem um sentido intuitivo dos gestos, da acrobacia, uma alma irrequieta, predestinada a partir a louça e fazer filmes com o mesmo desembaraço.

O encontro deu-se em 1923. Lev Kulechov precisava de um pugilista para o seu atelier de actividades cinematográficas — a atitude de ataque do pugilista era uma espécie de símbolo modernista da época — e quando o viu no ringue (os seus movimentos eram tão graciosos como os de um tigre ou de um leão), convidou-o para fazer de cowboy em As aventuras de Mr West no País dos Bolcheviques. A meio das filmagens zangaram-se, mas a carreira extraordinária e desprezada de Barnet já estava lançada à sua sorte.

Barnet distanciou-se logo das ideias rígidas de Koulechov, tão opostas à sua maneira de filmar; o seu método era a antítese perfeita de método. Elena Kuzmina, que foi sua mulher e é a sorridente Macha de À Beira do Mar Azul, conta que ele escrevia uns papelinhos — plano número tal, número tal, número tal — colava esses papelinhos e uns desenhos uns atrás dos outros, e fazia uma longa lista, num rolo. Depois desenrolava esta lista no chão e punha-se de joelhos a buscar a imagem que íamos filmar. E no final, filmava uma coisa muito diferente, acabávamos por improvisar.
Ele próprio disse a Sadoul: Quanto à minha concepção geral do cinema, gosto sobretudo da comédia, gosto de introduzir cenas divertidas num drama e episódios dramáticos num filme cómico. É uma questão de proporção. Com algumas excepções, todos os meus filmes são, para mal ou para bem, a expressão da vida contemporânea e dos seus problemas. Sempre que pude, optei por temas contemporâneos. Nem sempre é fácil abordar estes assuntos.
Realizou uma série filmes mudos de acção — e na suas obras, acção tem o sentido primeiro de movimento e choque, não só material mas também do próprio registo, pois ao carácter dramático Barnet opunha o burlesco, às lágrimas, o riso, numa mistura explosiva de temperamento, entre o improviso e a proporção. Em 1933 fez o seu primeiro filme sonoro; Okraina foi bem aceite, mas Barnet nem por isso. Apesar de não ser considerado um dissidente, situava-se claramente fora do cinema soviético instituído; os seus filmes eram demasiado inclassificáveis e, digamos, de uma natureza mais dionisíaca do que real socialista. Foi o que aconteceu com À Beira do Mar Azul, realizado em 1936. Ninguém compreendeu o filme, atacaram o argumento simples, fútil, emocional, uma realização demasiado feérica e pouco credível — mas de que serve uma história num filme, se todo ele é ritmo? de que serve uma imagem frouxa da realidade, se temos à nossa frente um confronto íntimo com os homens, com os seus sentimentos, a sua gravidade e a sua leveza, o maravilhoso desequilíbrio humano? A beleza e graça que passam pelos corpos e pelos planos (a alegria física dos encontros de que fala Bernard Eisenschitz), deixou indiferente a crítica. E no entanto, agora à distância, percebemos bem que esta pequena aventura numa ilha perdida ao Sul do Cáspio em que os heróis afogam-se e renascem, chegam e partem, apaixonam-se e enfurecem-se à semelhança do mar, em que a vida e o riso levam a melhor, é a única utopia possível.

Depois de À Beira do Mar Azul, Barnet passou três anos sem filmar. Ser cineasta soviético não era fácil e tentar eliminar o termo "soviético" como Barnet queria, distanciando-se das regras estéticas e políticas implantadas, não agradava a um sistema com patas de ferro. Em 45, numa carta à sua mulher, desabafa: "Tudo é difícil... devia ter feito outra coisa na vida, talvez um trabalho manual... Hoje é o primeiro dia de rodagem [de Podvg Razvietchika], faço um esforço para sair do meu quarto, em vão. Nada se faz.

Em 1965, Boris Barnet enforcou-se com fio de pesca num quarto de hotel. O seu desaparecimento passou quase despercebido e ainda hoje o seu trabalho precisa de ser resgatado.