A liberdade precisa de Blimundas

Duas notícias paradigmáticas no noticiário da manhã, da RTP1, de dia 7 de Maio de 2009.

Numa pequena localidade em Portugal (Afonsino?) os moradores juntam-se anualmente para fazer uma festa popular de raiz pagã/cristã.
Este ano apareceu a GNR a pedir a licença para a festa. Não havia licença. Pediram a identificação das pessoas, não a tinham. A confusão instalou-se. Os organizadores dispuseram-se a ir a casa buscar os documentos e meteram-se no carro. Os GNR dispararam dois tiros, um para o ar e outro para o pneu do carro e prenderam os organizadores por tentativa de atropelamento. Para os moradores nada disto fez sentido e ficaram convencidos que a GNR decidiu estragar-lhes a festa como vingança por não terem pedido licença.

A segunda notícia, refere que Portugal é dos países europeus com piores índices de mortalidade infantil por acidentes (quedas de prédios, afogamento em piscinas, ingestão de produtos tóxicos) e que é preciso legislar para melhorar este estado de coisas, nomeadamente legislar sobre a forma de utilização das piscinas.
Será que vamos também legislar sobre a forma como os pais devem tomar conta das crianças?

Como estas, poderíamos descrever inúmeras situações que representam por um lado uma cultura que “castiga” o cidadão (obviamente malandro!) apenas por não reverenciar a “autoridade” e a utilização da legislação para balizar, orientar, ensinar as pessoas a actuarem de forma responsável na maioria possível de comportamentos.

A nossa cultura parte do princípio de que o cidadão é malandro! Irresponsável! Ignorante. Não sabe o que é correcto fazer ou mesmo quer fazer mal.
Há que legislar TUDO para orientar as pessoas e para que elas possam ser responsabilizadas por toda e qualquer infracção.
A “autoridade” é fundamental nesta cultura.
Como as pessoas são irresponsáveis e, à partida, malandras é preciso um sistema policial abrangente (PSP, Câmaras, Asai, etc, etc.) que garanta que as pessoas reverenciam (têm medo) a “autoridade” garantindo assim que todas as regras são cumpridas.
Sendo este o valor predominante, todo o movimento, iniciativa, criatividade criam dificuldades na medida em que podem potenciar o aparecimento de situações não previstas na panóplia de legislação.
Fazer como sempre se fez é mais seguro, não cria problemas.
As tradições e os costumes são tomados como regras, a diferença é naturalmente olhada com desconfiança.
As pessoas são avaliadas pelo seu aspecto exterior, pelos sinais de sucesso e de riqueza, que significam que se dão bem com o sistema e … com a autoridade, são dóceis, previsíveis, controláveis.
As árvores genealógicas são um indicador de estabilidade.
A base de recrutamento das “autoridades” provém deste universo que quer manter o sistema estático porque o que se valoriza é a segurança e a comodidade.

É, portanto, perfeitamente compreensível que a GNR tenha estragado a festa em Afonsino apenas porque não foi pedida uma licença. Não interessa que a festa não incomodasse ninguém, não causasse qualquer prejuízo e estivesse, até, bem organizada.
Apenas não se pode permitir que os cidadãos actuem de forma responsável e pensem por si próprios.
Há que reverenciar a autoridade, valorizar o sistema de regras instituído.
Há que obrigar os cidadãos a manterem-se dentro da cultura de subserviência. Há que pedir licença!
A quantidade de leis! De coimas por tudo e por nada! Antes de fazer qualquer coisa é preciso saber se é permitido… E mesmo que seja permitido haverá certamente uma quantidade de papéis, de licenças e de autorizações a obter e de serviços públicos a percorrer. Servem para manter as sociedades o mais estáticas possível e garantir que os cidadãos, irresponsáveis e ignorantes, não fazem asneiras.

Parece-me que estes são aspectos fundamentais do que nos preocupa na nossa sociedade.

É preciso que as pessoas mudem de atitude e se valorize:
A iniciativa, a criatividade, a diferença;
As qualidades das pessoas, por si mesmas e o seu carácter e não a sua aparência e sinais exteriores de riqueza e sucesso;
As pessoas possam guiar as suas acções por critérios correctos e não pelo que outros possam pensar.

É preciso perceber que:
As leis servem para orientar os ignorantes e evitar que os criminosos façam mal, mas, fora destes casos, as leis não são precisas;
Há que dar liberdade às pessoas. As pessoas são capazes de avaliar por si próprias. As pessoas sabem que para terem liberdade têm que respeitar a liberdade dos outros;
Não há que ser subserviente à “autoridade”, não há que ter medo da “autoridade”;
Não há que estar de acordo;
É preciso valorizar a criatividade, encontrar novas maneiras de fazer as coisas;
É preciso que as pessoas confiem umas nas outras e não partir de atitudes de autoridade, prepotência, arrogância, para que as pessoas possam comunicar e resolver os conflitos;

É preciso conseguir que as pessoas valorizem a sua terra e as outras pessoas. Isso sim, mas não será através da repressão e das leis que se consegue que as pessoas façam as coisas com gosto. É preciso assinalar a impossibilidade das leis regulamentarem TODA a actividade humana.

Mas depois apercebemo-nos que quando não há regulamentação surgem crimes eventualmente com consequências graves para toda a comunidade e temos o exemplo do sistema bancário… Não havia regulamentação e o controle era nenhum porque se presumia a responsabilidade e competência das pessoas. Muito bem. Só que estas pessoas foram escolhidas, apoiadas, ascenderam de acordo com critérios de aparência, de conhecimentos, de títulos, de genealogia… Eram pessoas de confiança, pessoas do sistema, não havia perigo de cometerem ilegalidades ou serem incompetentes. À partida bastava a sua palavra. Muito bem. Só que o sistema permite a valorização das pessoas não pelo que são mas pelo que parecem ser.

Então o que é preciso fazer?
Mudar o sistema de educação e o sistema de valores que lhe está subjacente parece básico.
Em vez de ensinar a decorar, repetir, copiar o que já está feito, é preciso ensinar a pensar, criar, investigar, perceber a relação causa-efeito.
Em vez de ensinar a ter medo e a reverenciar a autoridade e os sinais exteriores de importância, ensinar a reverenciar a responsabilidade e o respeito pelos outros.
Em vez de ensinar a dissimular e enganar, ensinar a ser franco e aberto.
Ensinar que existem outros valores que não apenas os materiais.
Em vez de estimular a competitividade e a agressividade, estimular a tranquilidade e a abertura à compreensão dos outros para que seja possível resolver conflitos através da comunicação e da razão e não da força e da repressão.
Em vez de ensinar a fazer porque a lei impõe, ensinar a fazer porque é correcto e porque é bom para todos.
Ensinar a máxima cristã de fazer aos outros o que gostarias te fizessem a ti.

Se assim se fizer criamos adultos responsáveis, criativos, conscientes, capazes de tomar decisões sem estarem à espera que qualquer “autoridade” dite o que é bom ou o que é mau, o que se deve ou não fazer.
As pessoas não serão avaliadas pelas aparências, regras de etiqueta ou posses materiais. A criatividade, a inovação, serão valorizadas.
Deixaremos de estar sujeitos a esta avalanche de leis, regulamentos, penas e coimas, a “autoridade” servirá de facto e apenas para as situações criminosas e será exercida por pessoas com sentido crítico e critério de justiça.

Claro que isto não se consegue de um dia para o outro, mas será que não podemos ir fazendo algumas coisas para o conseguir? Ou será que precisamos de Blimundas que possam ver e desmascarar os “sonsos”?

Luis Mateus