Poemário (semana 2) Eça de Queirós

Filipe Silva recupera a poesia d' Os Maias:

- A Democracia! anunciou o autor de Elvira com a pompa duma revelação.
Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E levantando a mão num gesto demorado e largo:
Era num parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos...
- Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovelo do marquês. É sentimento... Aposto que é o festim!
E era com efeito o festim, já cantado na Flôr de Martírio, festim romântico, num vago jardim onde vinhos de Chipre circulam, caudas de brocado rojam entre maciços de magnólias, e das águas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncelos... Mas bem depressa transpareceu a severa ideia social da Poesia. Enquanto, sob as árvores radiantes de luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmúrios» - fora, junto ás grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabelos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados neste orgulhoso século XIX? De que servira então, desde Spartacus, o esforço desesperado dos homens para a Justiça e para a Igualdade? De que servira então a cruz do grande Mártir, erguida além na colina, onde, por entre os abetos
Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as águias revolteando
D'entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!
A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Génio das gerações fosse impotente para esta coisa simples - dar pão à criança que chora!
Martírio do coração!
Espanto da consciência!
Que toda a humana ciência
Não solva a negra questão!
Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja dum lado a fome
E do outro a indigestão!
Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas líricas, se gritara nada tão extraordinário! E sujeitos graves, em redor, sorriam daquele realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia o bi-carbonato de potassa.
- Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do colete.
Mas tudo emudeceu ante um chut terrível do marquês, que desapertara o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poéticos. E entretanto, no estrado, o Alencar achara a solução do sofrimento humano! Fora uma Voz que lha ensinara! Uma Voz saída do fundo dos séculos, e que através deles, sempre sufocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgota até à Bastilha! E então, mais solene por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquele honesto móvel de mogno fosse um púlpito e uma barricada - o Alencar, alçando a fronte numa grande audácia à Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a República!
Sim, a República! Não a do Terror e a do ódio, mas a da mansidão e do Amor. Aquela em que o Milionário sorrindo abre os braços ao Operário! Aquela que é Aurora, Consolação, Refugio, Estrela mística e Pomba...Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas asas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...

Eça de Queirós